O Instituto da Criança e do Adolescente (ICr) (fig. 1) é um dos nove institutos que formam o Complexo Médico-Acadêmico “Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina USP” (HCFMUSP) e sedia o Departamento de Pediatria da referida Escola. Foi oficialmente fundado em 12 de março de 1975 com o nome de “Instituto da Criança”, sendo o Prof. Eduardo Marcondes Machado (fig. 2) a principal liderança do processo de criação do ICr. Nos anos anteriores, nesse local já funcionava um serviço de emergência, carinhosamente chamado de “Postão”, destinado a atender sobretudo os numerosos casos de diarreia e desidratação em lactentes, que representavam de longe a principal causa de morbidade e de mortalidade infantil no Brasil até os anos de 1990. Além de ter como objetivos oferecer melhor assistência médica à criança e boa formação de médicos gerais e pediatras, a criação do ICr visava muito ao desenvolvimento da investigação científica em Pediatria, sobretudo nos campos da diarreia e seus distúrbios hidroeletrolíticos associados e da desnutrição infantil. Esta atividade foi especialmente favorecida naquele momento pela coincidência da implantação no país - com grande entusiasmo na FMUSP - dos programas de pós-graduação stricto sensu, incluindo o de Pediatria. Dentre os vários pesquisadores que rapidamente se envolveram, há que se destacar a contribuição extraordinária e original do Prof. Giuseppe Sperotto para o entendimento da fisiopatologia da desidratação e para a implantação em todo o país de esquemas simples para hidratação endovenosa, além do seu pioneirismo na reidratação oral.
Por ocasião de sua fundação, além de um pronto-socorro ampliado, o ICr dispunha de enfermarias e ambulatórios de Pediatria geral, além de algumas especialidades exercidas por pediatras, e da recém-criada unidade de terapia intensiva e do seu pioneiro e reconhecido Serviço de Higiene Mental, liderado pela psiquiatra Dulce Marcondes Machado. As especialidades pediátricas se desenvolveram cedo no HCFMUSP, muito em razão da proximidade com o Departamento de Clínica Médica, ao qual a disciplina de Clínica Pediátrica esteve formalmente vinculada até 1978. No começo da década de 1970 já existiam pediatras especializados em Endocrinologia (com ênfase em crescimento), Nutrição, Gastroenterologia, Hepatologia, Hematologia, Nefrologia e no ICr foram estimuladas a implantação da Oncologia, Pneumologia, Reumatologia, Infectologia, estas com grande apoio do Prof. Gabriel Wolf Oselka, e a área de Adolescência, sob a liderança da Profa. Anita Colli. Para as áreas de Alergia & Imunologia e de Genética, as primeiras especialistas se capacitaram em outras Instituições e no caso da Genética, a Profa. Claudette Hajaj Gonzalez foi para o Serviço do célebre Prof. John Opitz, na Universidade de Wisconsin – EUA. A Neonatologia continuou, como até o presente, alocada no prédio principal do HC (hoje denominado Instituto Central), ao lado da Divisão de Obstetrícia, hoje voltada sobretudo para gestantes de alto risco.
Na atualidade, o ICr é certamente um dos hospitais pediátricos que atende casos mais complexos em todo o nosso país - tanto clínicos como cirúrgicos - e recebe pacientes de todos os Estados brasileiros e também de alguns países vizinhos. Com um custeio anual de R$ 275 milhões em 2024, o ICr dispõe de 188 leitos instalados, 80 dos quais em terapia intensiva - ou seja, 43% dos pacientes internados - e segue cerca de 18 mil crianças e adolescentes nos seus ambulatórios e hospital-dia, o que resultou em 51 mil consultas em 2024, além de 13 mil no serviço de urgência. O seu corpo clínico conta atualmente com 324 médicos (dos quais 34 são Livre Docentes, 93 Doutores e 52 Mestres) e mais 18 docentes USP (com grau de Doutor ou superior) e 1.376 funcionários, sendo naturalmente a enfermagem o grupo mais numeroso.
Em 2014, foi proposta a mudança de nome da instituição para Instituto da Criança e do Adolescente, visando ao melhor acolhimento dos pacientes na segunda década de vida, que já representam hoje 46% dos atendidos no ICr. A USP reconheceu a relevância acadêmica da área de Medicina do Adolescente ou Hebiatria, concedendo-lhe uma vaga de Prof. Titular, para a qual foi selecionado em 2019 o Prof. Clovis Artur Almeida da Silva.
O ICr representa hoje o grande centro nacional de formação de pediatras especialistas em diferentes áreas: Alergologia & Imunologia, Dor & Cuidados Paliativos, Endocrinologia, Gastroenterologia, Genética, Hematologia, Hepatologia, Infectologia, Nefrologia, Neurologia, Nutrologia, Oncologia, Pneumologia e Reumatologia. Conta, para tanto, com residência em todos esses campos, com duração de dois anos, cursadas após a residência de Pediatria básica de três anos, que tem recebido há algumas décadas 40 novos residentes de 1º ano todos os anos. Cabe aqui destacar que o programa de pós-graduação stricto sensu do Departamento de Pediatria, criado em 1974, já formou 328 Doutores e 454 Mestres, que atuam hoje em quase todos os Estados do país.
A Cirurgia também tem sido uma área de grande importância na assistência e no ensino no ICr. Transferida para nosso Instituto desde a sua fundação, cresceu significativamente em função de suas atividades assistenciais, bem como do ensino e das pesquisas com modelos experimentais. Em 2001, a disciplina de Cirurgia Pediátrica trocou sua vinculação do Departamento de Cirurgia para o Departamento de Pediatria na FMUSP. Atualmente em torno de 30% dos pacientes internados no ICr são cirúrgicos, destacando-se os portadores de malformações congênitas do trato digestivo, parede abdominal e diafragma (que representam entre 80 e 90% dos internados na UTI neonatal) e os atendidos no programa de transplante hepático que, no final de 2023, alcançou mil pacientes, todos operados no ICr, sendo a maior parte de transplantes intervivos. No ano de 2024, foram realizadas 1.901 cirurgias no ICr, representando as de grande porte uma percentagem significativa das mesmas, destacando-se aqui as oncológicas e a realização de 46 transplantes hepáticos.
Com o expressivo apoio da iniciativa privada, em 2006, foi inaugurado o ITACI (Instituto de Tratamento do Câncer Infanto-Juvenil), localizado a duas quadras do ICr, visando a acolher a crescente demanda de casos de neoplasias. Embora atualmente ligado ao ICESP (Instituto do Câncer do Estado de São Paulo, também parte do Complexo HCFMUSP), esteve até o presente sob a liderança médico-científica do Prof. Vicente Odone Filho. Tem hoje como uma de suas principais atividades o transplante de medula óssea, que chegou a 49 casos em 2024, ou seja, uma média de um/semana, na sua maior parte alogênicos, tanto de doadores aparentados como não aparentados, visando ao tratamento de doenças genéticas, sobretudo as imuno-hematológicas. A propósito, é o único serviço público no Estado de São Paulo, que oferece esse tipo avançado de tratamento.
A preocupação com o ensino extramuros tem sido uma constante entre as lideranças em Pediatria da FMUSP, mesmo antes da existência do ICr. Basta lembrar o tratado pioneiro de “Pediatria Básica” (editora Sarvier) (fig. 3), liderado pelo Prof. Pedro de Alcantara, lançado ainda na década de 1960, que favoreceu sobremaneira o ensino da área em todo o nosso país. Nas décadas seguintes, houve intensa produção de livros de temas de Pediatria geral e de algumas especialidades e no começo dos anos 2.000 foi iniciada a coleção “Pediatria Instituto da Criança e do Adolescente do HCFMUSP” (editora Manole) (fig. 4), que já editou 27 títulos diferentes contemplando sobretudo as especialidades e algumas áreas multiprofissionais. Vários títulos já estão na 2ª e 3ª edições e o de “Pronto Socorro” já se encontra em sua 4ª edição, tendo sido consagrado como um “companheiro” de muitos pediatras atuando nos rincões deste imenso país. Outra ação de educação continuada tem sido a transmissão por internet das reuniões clínicas semanais do ICr (4as feiras, 9-10:30h), o que começou durante a pandemia de COVID-19 e que, em razão do seu alcance, decidiu-se mantê-las de forma híbrida, constituindo hoje um rico acervo já com cerca de 100 conferências, todas de livre acesso (www.youtube.com/@reunioesclinicas).
Finalmente, cabe destacar que as ações ligadas à Humanização têm sido muito valorizadas no ICr, com um grupo dedicado à promoção e coordenação dessas ações, incluindo, desde o seu início, um dos Professores Titulares. Lançadas ainda na década de 1980 junto com a criação do Curso de Terapia Ocupacional (TO) na FMUSP, as atividades chamadas de Humanização são também exercidas por psicólogos, arteterapeutas, assistentes sociais e existe estímulo constante – e bem-sucedido - ao envolvimento de todos os profissionais – dos porteiros e telefonistas aos médicos assistentes - no bom acolhimento dos pacientes e seus familiares. A partir de 2003, o Ministério da Saúde estabeleceu e vem desenvolvendo uma política pública nessa área.
O programa “Diagnóstico Amigo da Criança”, iniciado em 2012, é um exemplo de conjunto de ações de Humanização envolvendo médicos, enfermagem e muitos outros profissionais, tendo como objetivos principais: i) redução do volume de sangue colhido para análises laboratoriais, ii) redução da exposição à radiação ionizante (representada sobretudo pelo raio-X), priorizando-se a ultrassonografia sempre que possível e procurando-se inovar nessa técnica, iii) redução do sofrimento físico e emocional da criança através da melhoria da ambiência e da diminuição/abolição dos períodos de jejum. Com o apoio da iniciativa privada, houve uma grande mudança no ambiente físico de todo o ICr, tornando-o mais colorido e lúdico. Por ocasião da comemoração dos 40 anos da Instituição, o Instituto Gustavo Rosa (pintor paulista, 1943-2013) doou imagens de cerca de 200 gravuras que passaram a figurar em várias áreas e são sempre motivo de alegria e curiosidade para os pacientes (fig. 5). Houve uma atenção especial para as áreas de diagnóstico imagenológico e laboratorial, tendo sido o aparelho de ressonância magnética adaptado para simular um submarino amarelo navegando no fundo do mar (fig. 6), e a área de coleta de sangue colorida com cenas do bosque do desenho da “Masha e o Urso”, de Oleg Kuzukov, lançado em 2009 (fig. 7).
O aniversário de 50 anos representa um momento de especial maturidade para planejar os próximos passos de uma instituição, baseando-se na tradição e na experiência herdadas de seus pioneiros. Uma das iniciativas para melhorar a qualidade da atenção aos pacientes, oriundos em sua maioria das camadas mais vulneráveis da população, tem sido a organização de um voluntariado mais profissionalizado e mais envolvido com os destinos da Instituição. Constituiu-se em 2023 o Conselho Consultivo Comunitário, com a participação de empresários e outras lideranças da sociedade paulistana. Outra ação - que contempla a assistência, o ensino, a pesquisa e a inovação - tem sido a maior atenção às chamadas Doenças Raras (genéticas na sua maioria), em que o ICr e o Departamento de Pediatria têm liderado uma iniciativa recente e significativa da FMUSP denominada “Centro Integrado de Doenças Genéticas – CIGEN” (https://www.fm.usp.br/fmusp/centros-5 interdepartamentais/centro-integrado-de-doencas-geneticas-cigen), cujas propostas têm recebido suporte financeiro expressivo das agências oficiais de fomento à pesquisa e desenvolvimento tecnológico. Em 2024, foi realizado um levantamento sobre a frequência de Doenças Raras (DRs) entre os pacientes internados no prédio do ICr (excluídos pacientes do ITACI e do Berçário Anexo à Maternidade). Constatou-se que 60% dos mesmos tiveram diagnóstico confirmado de uma DR, quase sempre com base em cifras populacionais de outros países, por falta de estudos nacionais. Outros 5,5% apresentavam alguma doença crônica ainda sem completa elucidação, muito provavelmente também uma DR, o que mostra que cerca de dois terços dos nossos casos – clínicos e cirúrgicos – se encaixavam nesta categoria, considerando-se aqui a definição adotada pelo Ministério da Saúde: doença com frequência igual ou menor que 65/100.000.
Autora: Profa. Dra. Magda Carneiro-Sampaio, Titular do Departamento de Pediatria da FMUSP e Presidente do Conselho Diretor do Instituto da Criança e do Adolescente do HCFMUSP.
Fontes bibliográficas citadas no texto:
Grassiotto C, Pavani S, Cavalcanti NV, Gonçalves A, Watanabe A, Odone-Filho V, Tannuri ACA, Silva CAA, Carneiro-Sampaio M. Patients with rare diseases are responsible for the majority of hospitalizations in a Brazilian tertiary pediatric hospital: Preliminary data. Clinics (Sao Paulo). 2024 Nov 22;79:100535. doi: 10.1016/j.clinsp.2024.100535. PMID: 39579463; PMCID: PMC11625286.
Zimmermann JO, Sampaio ASC, Kudo AM, Carneiro-Sampaio M. Humanization: Improving patient and family experience in a public pediatric hospital. Clinics (Sao Paulo). 2023 Apr 2;78:100187. doi: 10.1016/j.clinsp.2023.100187. PMID: 37015186; PMCID: PMC10757272.