Cultura e Lazer

Medicina humanizada com arte: uma proposta humanística, ética e terapêutica

A relação médico e paciente e o atendimento humanizado são fundamentais para a sociedade e a classe médica. Com frequência, os profissionais de saúde são cobrados a assumirem uma postura de maior envolvimento, sensibilidade e dedicação com os seus pacientes. Busca-se dentre muitos caminhos possíveis, mais que um atendimento mecânico com a frieza e equidistância profissional. Buscando facilitar essa interação, a medicina está percorrendo novos caminhos e os profissionais de saúde e suas entidades estão tomando posições e alertando para os perigos de se manter um modelo de atendimento distante, frio e fragmentado. Os profissionais de saúde devem seguir um modelo holístico e não fragmentado ao se relacionar com seus pacientes.

Com a finalidade de buscar novas alternativas a partir desta visão humanística, que possa propiciar não só a cura, mas o alívio e o consolo, verifica-se a perspectiva de ampliar a “arte de curar”. “A arte de curar” tem como um dos caminhos a própria arte para humanização do tratamento e contribuição terapêutica, com ética, compaixão, acolhimento e beneficência. A arte como proposta possibilita o engrandecimento cultural, a formação de cidadãos plenos, profissionaliza paciente, muitas vezes que estão fora das escolas e cursos pela patologia que os deixam impossibilitados de participar. A arte é uma poderosa ferramenta de pesquisa científica pelas variadas formas de apresentação em seus públicos-alvo.

A arte atua como proposta pedagógica em qualquer instituição de ensino na área de saúde, dotando seus alunos e professores de ferramentas expressivas para aplicação nos seus universos de trabalho. É incontestável a sua relevância socioeconômica, cientifica e institucional.

A utilização da arte e de seus benefícios no processo terapêutico e na humanização médica é um fenômeno global que vem se consolidando na área da saúde. Como um recurso Biopsicossocial, os efeitos benéficos das artes expressivas na relação médico/profissional-família-paciente promove uma melhor atenção à saúde, o cuidado ético e humanizado e aceitação do tratamento e do ambiente hospitalar no sentido de favorecer a liberação de angústias, sofrimentos, aflições, medos e desafios causados pela doença. Os profissionais que atuam direta e indiretamente no programa percebem que as artes potencializam o processo terapêutico ao favorecer a ressignificação resiliente da experiência de adoecimento tanto pelo paciente, como pelos familiares, a melhora da comunicação e das relações envolvendo profissional-paciente-família, da ambiência hospitalar que mantém o paciente inserido social e culturalmente, e consequentemente, uma melhor adesão ao processo de tratamento e de hospitalização.

Como dispositivo ético, observamos que as artes influenciam na melhor resolução de dilemas e conflitos éticos e morais associadas à vivência da doença, nas tomadas de decisões, assim como no enfrentamento das vulnerabilidades sociais, da hospitalização e das condições institucionais. Ao ampliar a participação e a autonomia em especial do paciente pediátrico nas atividades artísticas propiciadas e estimuladas pela oferta de diferentes projetos envolvendo a arte na medicina, impactam na dignidade e no bem-estar tanto do paciente como dos seus familiares. Um dos primeiros contatos com o universo da arte na medicina e sua profundidade, foi quando recém-formado tive conhecimento de que um médico solicitou um lápis e um papel e pediu para a paciente desenhar a sua dor. Como músico /baterista desde criança, sabia da importância da arte no contexto social, no entanto esse momento foi impactante para entender esse voo maior que a arte permite na medicina.

Nesse contexto, idealizamos o programa “A arte na medicina às vezes cura, de vez em quando alivia, mas sempre consola” – Faculdade de Ciências Médicas – Universidade de Pernambuco (UPE), com projetos cujas ações permitem um exercício da medicina com bases humanísticas e um fio condutor para liberação dos sofrimentos, angústias, aflições e, assim, atingir uma quietude de corpo e da alma. Uma contribuição no processo terapêutico, como numa receita médica, a arte é o remédio prescrito.

O Programa consolida-se na sua completude nesses quase 30 anos de atividades e comprova a necessidade de uma atenção voltada para a integralidade e a humanização, levando as instituições de saúde a buscarem a adoção de técnicas e condutas na perspectiva do cuidado ampliado, as quais são integradas às técnicas de cuidado convencional, práticas médicas humanísticas, a exemplo das artes em sua plenitude.

Vários projetos foram desenvolvidos pelo Programa na área do acolhimento, da terapia, da comunicação, da pedagogia envolvendo pacientes e familiares, profissionais, docentes e discentes dos cursos de saúde da UPE, entre eles: o Música é Vida, que inclui a participação da Orquestra de Médicos do Recife, o Som da Vida, beneficiando as gestantes e os recém-nascidos, o Arte na Cabeça, adolescentes usuários de drogas são o público-alvo, Escolinha de Iniciação Musical e Artes, carinhosamente chamado de Castelinho, onde várias atividades artísticas são realizadas para as crianças, adolescentes e familiares em tratamento, incluindo os estudantes. A oficina de Contos de Fadas, utilizando as histórias como fio condutor arteterapêutico e a publicação desses contos cujos autores são as próprias crianças. Um projeto especial, com a proposta da fisioterapia e o uso de instrumentos musicais, é o Reabilitar com Arte, como exemplo temos a bateria e a percussão, a gaita, o teclado, o violão, entre outros, na área respiratória, motora, neurológica e ortopédica. Nos currículos dos alunos da área de saúde da UPE, são oferecidas a disciplina de Arteterapia e a disciplina de Saúde e Arte e, nas aulas práticas da Pneumologia, simulação dramatizada. Como projeto na comunicação na saúde, utilizamos a abordagem por meio da grafitagem, dos cartuns e dos cordéis. O programa já publicou vários livros utilizando essas linguagens. A dádiva do cuidar, princípio das humanidades, aborda os cuidados que devemos ter com as nossas crianças, desde a concepção até a adolescência, com uma linguagem simples dos cordéis e as ilustrações expressivas dos cartuns.

“História é um sonho de olhos abertos que outra pessoa sonha e conta para gente”

“Quimioterapia é uma água mágica, da cor de limonada, que nossa veia bebe para ficar boa”.

“Morrer é a gente fechar os olhos e ficar sonhando para sempre”

Outra criança portadora de cardiomegalia descreveu:

“Essas historinhas são de gente pequena com coração grande”

Essas frases foram pinçadas do projeto Oficina de Contos de Fadas, ditas por crianças com idades menores de seis anos, como também o relato sobre duas crianças oncológicas autoras do conto A Flor e a Laranja. A Flor foi uma associação ao tumor dela na radiografia de tórax, que parecia uma flor, e a Laranja à aparência do tumor que cresceu na barriga. Esse conto foi publicado, narrado em CD e ganhou forma em linguagem de vídeo. Nesses contos, a criança tem oportunidade de liberar suas fantasias, seus sonhos e seus medos.

Um paciente portador de AIDS, durante uma apresentação musical nos jardins do hospital, ao ser perguntado o que representa aquele momento para ele, afirmou: “É o momento do meu encontro com Deus”.

Um adolescente oncológico que frequentava as aulas no Castelinho relatou:

“Antes eu contava os dias para não ter que ir ao hospital fazer quimioterapia, agora conto os dias para ir ao hospital tocar bateria”. Uma mudança no paradigma do que representava o hospital para ele. É o poder transformador da arte. Hoje já adulto, é baterista.

“Antes do Castelinho, eu via o mundo em preto e branco. Agora, eu vejo colorido, por isso que toda semana eu pinto os meus cabelos com diversas cores”. A expressão no corpo, do sentimento e da alma. Esse mesmo adolescente portador de osteosarcoma, com amputação de um membro, em uma sessão de arteterapia, que tinha como fio condutor uma máquina fotográfica, foi pedido que caminhasse pelo hospital e fizesse imagem que representasse seus sentimentos. Uma árvore com “galhos amputados” foi a foto realizada.

Hoje, adulto, profissão artista plástico, e repassa a sua arte para pacientes no Castelinho.

Nesse mesmo momento arteterapêutico, outro adolescente, paciente cardiopata, com duas cirurgias de troca de válvulas, passado de febre reumática, traumatizado pela cicatriz torácica, fez a sua foto:

Hoje, casado, dois filhos e músico profissional, com formação no Conservatório Pernambucano e diplomado pela UFPE. Sua iniciação musical se deu no Castelinho nas aulas de bateria; “foi a doença e o acolhimento hospitalar que tive que mudaram minha vida e me fizeram ser um homem realizado e me deram uma profissão”.

Várias outras crianças e agora adultas, com a utilização da arte em seu tratamento, tiveram a oportunidade de se tornarem profissionais das artes.

Nesse momento da evolução da inteligência artificial, é preciso ter cuidado para evitar uma obesidade tecnológica e desnutrição humanística. A verdadeira tecnologia de ponta é o investimento na alma humana celebrando a vida.

Cuidar e educar uma criança, sempre será um grande desafio. Às vezes pecamos por excesso, outras por ausências, mesmo que a finalidade seja o bem delas. O mais importante é elas saberem sempre que foram, estão sendo, e serão muito amadas.

Como é difícil exercer essa “ARTE DE AMAR”