Entrevista com a Acadêmica

Da assistência à liderança, a trajetória da acadêmica da cadeira nº 19 da Academia Brasileira de Pediatria

Em entrevista ao Boletim da Academia Brasileira de Pediatria (ABP), a médica Luciana Rodrigues Silva — titular da cadeira nº 19 — compartilha momentos marcantes de sua trajetória como pediatra, pesquisadora, gestora e liderança no movimento associativo. Especialista em Pediatria com área de atuação em gastroenterologia e hepatologia pediátricas, sua carreira foi construída na Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde ajudou a criar e transformar serviços, formar gerações de especialistas e abrir novos caminhos para a pediatria brasileira.

Como começou sua trajetória na pediatria e, em especial, o interesse pela gastroenterologia e hepatologia pediátricas? É um prazer participar deste boletim. Tenho muita alegria em fazer parte da Academia. Minha trajetória começou ainda na graduação, quando inicialmente pensava em seguir anatomia patológica. Mas, no internato, me encantei pela pediatria graças a três professores muito especiais: o professor Nelson Barros, o professor Sabino Silva, o professor Orlando Sales e a professora Círia Santana.

A partir daí, não tive mais dúvidas. Fiz residência em pediatria no Hospital das Clínicas da UFBA e, durante o segundo ano, tive uma vivência importante no serviço de gastroenterologia e hepatologia pediátricas da UFRJ. Isso me despertou para criar uma área ainda inexistente na Bahia e nesta área conseguimos criar a Residência em Gastroenterologias Pediátrica, na qual temos formado vários especialistas da Bahia e de outros estados com muita alegria.

Na época, só havia a neuropediatria como subespecialidade estruturada. Foi quando criamos os primeiros ambulatórios: hepatologia às terças-feiras e gastroenterologia às quintas. Isso foi em 1981. Esses ambulatórios foram ampliados e existem até hoje, e me enchem de orgulho por terem sido os primeiros do estado. Começamos com poucos recursos, mas com muito empenho e articulação com centros de excelência de outros estados. Com o tempo, avançamos e estruturamos uma residência específica na área, que segue até hoje, e criamos ambulatórios específicos para doenças inflamatórias intestinais, hepatite autoimune, colestase, transplante de fígado, mantendo os de gastroenterologia 1 e 2 e os de hepatologia 1 e 2. Hoje, temos atendimento de segunda a sexta-feira, além de sessões clínicas, discussões de casos, acompanhamento de pacientes internados e uma interação constante com a equipe de gastroenterologistas de adultos e com os Programas de Pós-graduação, o que sempre enriqueceu muito nossa prática. Neste Serviço em todo o período fizemos atividades com os outros preceptores de assistência, ensino, pesquisa com criação do conhecimento e atividades junto à comunidade.

Depois do meu período de Residência, fiz o concurso para Professor Auxiliar e cursei o Mestrado e o Doutorado na Universidade Federal da Bahia e o Pós-Doutorado na Bélgica e na França, que ampliaram muito minha experiência como docente e pesquisadora. Após a progressão habitual, fiz então o concurso para Professor Titular de Pediatria da UFBA, naquela época a professora titular mais jovem no país. Durante os mais de quarenta anos de docência, houve uma produção de mais de 200 artigos científicos, quinze livros e várias orientações de Pós-Graduação como Mestrado e Doutorado e ampla participação em congressos e aulas no país e no exterior.

Olhando para essa construção, qual foi o maior desafio?

O maior desafio foi querer contribuir com o crescimento da pediatria dentro de um hospital público, com suas limitações, mas também com oportunidades únicas. Enfrentamos obstáculos, inclusive de pessoas que resistiam à criação de novas ideias e novos serviços. Mas conseguimos construir algo que ultrapassou a gastroenterologia pediátrica: vieram depois os Serviços de outras especialidades pediátricas tais como a pneumologia, a reumatologia e outras áreas e a pediatria cresceu de modo significativo.

E os avanços mais significativos nas áreas de gastro e hepatopediatria nos últimos anos?

A medicina avança de forma impressionante. Nas doenças inflamatórias intestinais, por exemplo, saímos de tratamentos restritos a corticoides para o uso de imunossupressores, imunobiológicos e pequenas moléculas, com impacto direto na qualidade de vida dos pacientes. Houve mudanças também na epidemiologia dos quadros alérgicos e das doenças crônicas e grandes evoluções na compreensão da fisiopatologia e na interação com a microbiota intestinal e a relação cérebro-intestino. Na hepatologia, o maior marco foi o transplante de fígado. Hoje conseguimos oferecer tratamentos antes impensáveis para nossos pacientes, desde os lactentes até os adolescentes.

Você também é autora de livros referência na área. Como surgiu esse projeto editorial?

Já são quase 30 anos de produção editorial. Os seis livros que organizamos sobre gastro e hepatopediatria são hoje base para formação de especialistas no Brasil inteiro. Trabalhamos com colegas como a Dra. Cristina Targa (RS) e a Dra. Elisa Carvalho (DF), e buscamos sempre trazer o que há de mais atual com a colaboração de vários colegas. Outros livros em Pediatria também foram concebidos sempre buscando aperfeiçoar os pediatras generalistas e especialistas. Publicamos recentemente a segunda edição de um dos principais títulos. Esses livros ajudam os especialistas e também reforçam nossa ideia de que dividir conhecimento é essencial. Como dizia Goethe, “à medida que o conhecimento avança, as dúvidas se multiplicam”. Vale enfatizar ainda a coordenação e criação de um novo Serviço de Pediatria em Salvador, o Pronto Atendimento Pediátrico do Hospital Aliança, onde a Dra Luciana coordenou durante 25 anos com assistência primorosa e também publicação de protocolos de atendimento e um livro em três edições, considerado um dos melhores Serviços no país.

E como começou sua atuação no movimento associativo?

Ainda residente, comecei a participar da Sociedade Baiana de Pediatria com o professor Nelson Barros. Em 1982, fui a congressos da Sociedade Brasileira e passei a atuar mais diretamente. Fui presidente da Sociedade Baiana, depois duas vezes presidente do Departamento de Gastroenterologia da SBP. Fui em seguida vice-presidente em duas gestões e, por fim, assumi a presidência da SBP — como a primeira mulher, em mais de 100 anos de história. Como a primeira presidente mulher da Sociedade Brasileira de Pediatria no período de 2016 a 2023 em duas gestões, Dra Luciana revolucionou as ações científicas e a gestão da SBP, visitando quase todas as filiadas e descentralizando os eventos, e modificando a gestão da entidade e a representatividade dos pediatras brasileiros em várias ações. Isso marcou muito minha trajetória e inspirou outras colegas. A pediatria é majoritariamente feminina, mas as lideranças eram, até então, quase todas masculinas. Conseguimos fazer uma gestão colegiada, com escuta e inovação, e isso foi muito gratificante

Esse reconhecimento como liderança feminina na pediatria foi visível nos congressos...

Sem dúvida. Nos vários congressos e no congresso de encerramento das minhas gestões, fui muito procurada por colegas, especialmente mulheres, que queriam tirar uma foto, pedir conselhos e dar um abraço. E isso continua acontecendo até hoje nos eventos e em outras oportunidades. Percebo que inspirei outras mulheres a acreditarem que é possível aspirar e realizar coisas. Não queremos estar acima ou à frente dos homens — queremos igualdade de oportunidades. Há muitos homens que nos apoiam, mas também ainda há grandes resistências, inclusive entre algumas mulheres, com relação à liderança feminina.

Atualmente, você é vice-presidente da Associação Médica Brasileira. Como tem sido essa experiência?

Foi mais um desafio. Houve um momento crítico na AMB, e eu incentivei o professor César Fernandes a se candidatar. Fui convidada a compor a chapa como vice-presidente, também de forma inédita para uma mulher. Desde então, estamos fazendo uma gestão inovadora. Realizamos o Congresso para Médicos Generalistas, reforçamos a atuação política da entidade, criamos o Conadem para avaliar o desfio do trabalho das mulheres médicas e temos enfrentado um problema seríssimo: a proliferação de cursos de medicina sem qualidade. Essa é hoje a maior batalha da AMB, lutar pela qualidade da assistência à população.

E ser membro da Academia Brasileira de Pediatria?

É uma honra imensa. Fui convidada pelo professor Nelson Barros, e, na época, eu era apenas a terceira mulher na Academia. Os membros desta Academia são nomes de grande contribuição à pediatria brasileira, com participações significativas em várias instâncias. Estar entre eles é motivo de muito orgulho. Faço parte também da Academia de Medicina da Bahia com semelhante orgulho.

Você vem de uma família de médicos?

Sim. Meu pai era clínico e professor de farmacologia, e minha mãe, pediatra. Ambos foram colegas de turma e tiveram enorme influência na minha escolha. Cresci nesse ambiente de valorização do estudo, da medicina e do cuidado com as pessoas.

Você também é autora de um livro de poesias. Como vê a relação entre arte e medicina?

Essencial. A medicina exige sensibilidade, e a arte amplia nossa capacidade de escuta e acolhimento. A literatura, a música, a pintura — tudo isso nos humaniza e nos prepara melhor para cuidar do outro. Escrever me ajuda a expressar sentimentos e a compreender melhor as dores que encontro como médica.

Há alguma história marcante da sua trajetória como médica que gostaria de compartilhar?

Lembro de uma paciente que acompanhei desde pequena. Quando chegou a hora de encaminhá-la para o seguimento com um médico de adultos, ela foi ao consultório com um desenho e um abraço. Disse que enfrentou a doença por causa das nossas conversas e que estava cursando o curso de Medicina e queria ser médica como eu. Este é um dos reconhecimentos muito louváveis. São esses momentos que renovam nossa motivação.

Para finalizar: o que você diria ao jovem médico que pensa em seguir a pediatria, apesar dos desafios atuais?

Diria: faça pediatria enquanto isso fizer sentido para você. Entregue-se de corpo e alma. Reflita todos os dias sobre o que aprendeu, mesmo com as experiências difíceis. Elas ensinam muito. Não se isole — converse com colegas, troque experiências. E, acima de tudo, seja um bom profissional e uma boa pessoa, não para os outros, mas para você mesmo, siga com o propósito de aperfeiçoamento contínuo e de aprender sempre com as boas e as experiências difíceis.. E, para encerrar, deixo um fragmento de um poema de Fernando Pessoa que diz tudo: “Seja o melhor que você pode ser dentro do que você é.”