Editorial

Intervenções em comunidades vulneráveis – papel do pediatra 

A mortalidade infantil global diminuiu nos últimos anos e assim foi atingido o quarto Objetivo de Desenvolvimento do Milênio: reduzir a mortalidade infantil da linha de base de 1990 em dois terços até o ano de 2015. Entretanto, a mortalidade neonatal, que ocorre nos primeiros 28 dias após o nascimento – ainda totalizando 2,3 milhões de mortes neonatais anualmente, ao redor do mundo, é um desafio. 

Nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), uma agenda pactuada por vários países para 2030, entre as metas globais, está incluída uma meta específica: a meta 3.2, que diz que todos os países devem reduzir a taxa de mortalidade neonatal (TMN) para 12 ou menos mortes por 1.000 nascidos vivos até 2030, com o objetivo de acabar com as mortes evitáveis de recém-nascidos. 

As três principais causas de mortalidade neonatal global são eminentemente tratáveis: prematuridade, infecções e eventos relacionados ao parto, como a asfixia neonatal. Nesse sentido, desde 2010, foram sugeridas ações para redução da mortalidade neonatal, entre elas, aprender com a experiência de outros países, que conseguiram atingir a meta dos ODS de TMN ≤12/1.000 nascidos, desde década de 1970, quando surgiram os cuidados neonatais qualificados: suporte ventilatório, uso de corticoides, surfactante e pressão positiva contínua nas vias aéreas (CPAP).

Os países que já conseguiram atingir a meta dos ODS, investiram em cuidados primários básicos, com ampliação de maternidades e cuidados neonatais, além de implementar políticas públicas para reduzir as desigualdades, incluindo a garantia de acesso a pessoal qualificado em áreas rurais. De acordo com o DATASUS, desde 2018, a cada 1.000 crianças indígenas nascidas vivas, 14,7 morreram no período neonatal. Entre as crianças não indígenas, essa taxa foi quase a metade, ou seja, de 7,9 para cada 1.000 nascidos vivos. Apesar de a meta do ODS já ter sido alcançada pelas crianças não indígenas brasileiras, ela ainda é uma realidade distante da população indígena do país. 

No Brasil, desde 1994, o Programa de Reanimação Neonatal (PRN) da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), coordenado pelas professoras Ruth Guinsburg e Maria Fernanda Branco de Almeida, capacita profissionais de saúde em todo o Brasil para ajudar o bebê a respirar no minuto de ouro, o que pode reduzir morte e sequelas graves por asfixia. 

Cada nascimento é um encontro único com a vida. Mas, para alguns bebês, os primeiros minutos podem ser decisivos. Ter profissionais preparados em reanimação neonatal significa transformar incerteza em esperança, risco em chance de viver. É a diferença entre perder e salvar uma vida, entre sequelas e um futuro saudável. 

Ao longo desses anos, entretanto, vários fatores ainda desafiam o objetivo do Programa, como o fato de o País ser continental, ter grande diversidade cultural e não ter acesso fácil a populações vulneráveis como a população indígena, quilombolas e moradores de áreas ribeirinhas. Sabe-se que essas populações vivem situações cotidianas de agressões à natureza, crise climática, insegurança alimentar e que, em busca de atendimento, chegam a percorrer longas horas de viagem a pé, de barco ou com outro tipo de transporte até chegar a uma unidade de saúde. 

Desde 2009, o PRN-SBP tem trabalhado uma capacitação específica para Parteiras Tradicionais junto ao Ministério da Saúde, que define como parteira tradicional aquela que presta assistência ao parto domiciliar com base em saberes e práticas ancestrais, especialmente em áreas rurais, ribeirinhas e distantes dos centros urbanos. O curso é baseado nas diretrizes do PRN-SB e visa o suporte básico de vida para o atendimento neonatal em áreas remotas que não contém assistência por médicos ou profissionais de saúde, mas com mulheres e homens que têm a cultura tradicional de atendimento ao parto em comunidades distantes de centros médicos. O curso tem como responsáveis, pediatras instrutoras que compõem o Grupo Executivo do PRN-SBP para ações e metas específicas, onde estamos incluídas eu e a professora Rossiclei Pinheiro, do Estado do Amazonas, que iniciou este processo a partir de um projeto inicial intitulado “Filhos da Floresta”, abrangendo assistência ao parto em locais de área remota realizado com parteiras tradicionais. 

Atualmente, já foram capacitadas mais de mil parteiras nas regiões Norte, Amazônia legal, Nordeste, Centro-Oeste do Brasil e ultimamente também no norte do estado de Minas Gerais. Nos treinamentos, todos recebem um kit para o primeiro atendimento e transporte neonatal seguro para um centro de referência mais próximo. Para concretizar tais doações, é essencial que haja parcerias com secretarias de saúde dos municípios, estados, Organizações Não Governamentais e associações. 

O curso tem logística própria, predominantemente visual, figurativo e lúdico, com o objetivo de inclusão de pessoas com variados níveis de compreensão e linguagem; e a possibilidade de ser aplicado em diferentes contextos geográficos. Inclui material didático gráfico, com manuais para o instrutor e para as parteiras e um plano de ação (fluxograma) em formato de banner, que dá suporte e apoio, considerando a singularidade do treinamento; contempla saberes tradicionais, cultura de um povo ao mesmo tempo em que está alicerçado na medicina baseada em evidências. Na elaboração deste material, contamos com a colaboração das pediatras instrutoras do PRN-SBP, da filiada da SBP em Minas Gerais, que se juntaram a nós, no Grupo Executivo, Dra. Márcia Penido e Dra. Marcela Damásio. 

Por fim, dizemos que o curso é resultado de determinação e resiliência na medida em que são superadas dificuldades para atingir as localidades e as negociações com setores da sociedade para troca e partilha, mas essencialmente se caracteriza pela esperança de salvar vidas de bebês. 

Atualmente, além do treinamento específico para a ventilação com pressão positiva, reforçamos as boas práticas da hora de ouro baseadas em evidência, quais sejam contato pele a pele para o bebê que nasce bem e o aleitamento materno na primeira hora. 

Quando iniciamos a caminhada com os cursos de reanimação neonatal para as parteiras tradicionais, percebemos que o conhecimento poderia atravessar fronteiras culturais e salvar vidas. Cada encontro com essas mulheres sábias reafirmou em nós, que salvar uma vida começa com respeito à diversidade, culturas, diálogo e partilha de conhecimento. O futuro da neonatologia brasileira, através do PRN SBP, reconhece que ciência e tradição podem caminhar lado a lado.