Presença dos pediatras na Atenção Primária.

Ponderações legais, éticas e bioéticas para discussão

Há pelo menos duas décadas, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e filiadas defendem o retorno do pediatra à Atenção Primária em Saúde (APS) em todas as suas fases e peculiaridades. Há alguns anos, a SBP entregou texto fundamentado, com dados e referências atualizados, ao ministro da Saúde do governo anterior, solicitando discussão sobre a participação do pediatra na APS, sem obter resposta objetiva. Atualizou o texto1, dados e referências e, em reunião com a ministra da Saúde do governo atual, repetiu a entrega e solicitação, não obtendo, da mesma forma, resposta sobre o apelo.

A Pediatria é reconhecida como especialidade pela Comissão Mista de Especialidades (CME) - AMB/CFM/CNRM, tendo como requisitos formação de 3 anos pela CNRM no Programa de Residência Médica em Pediatria ou aprovação no Concurso para o Título de Especialista em Pediatria, TEP, do Convênio AMB/Sociedade Brasileira de Pediatria. A Medicina do Adolescente é Área de Atuação da Pediatria, com formação de 1 ano, tendo como pré-requisito Residência em Pediatria ou TEP. São inequívocas, portanto, do ponto de vista técnico-científico, da capacitação e do treinamento, a segurança e eficácia do pediatra no atendimento a crianças e adolescentes, como os mestres vêm nos ensinando há mais de 115 anos. O pediatra sempre interagiu com as famílias de maneira diferenciada, valorizando a relação médico/paciente/família, sendo ouvido e respeitado. É ainda comum, em comunidades carentes, mães tornarem-se multiplicadoras das orientações que recebem do pediatra, durante atendimento a seus filhos, identificando e alertando outras mães para os sinais de perigo e de gravidade de doenças, chamando atenção para a necessidade de atendimento imediato, entre outras preciosidades, podendo salvar vidas. A pediatria é uma das especialidades mais amplas e complexas entre as 55 reconhecidas.

O Brasil é um país continental com imensas desigualdades. O SUS é um dos maiores e mais completos sistemas de saúde pública, sendo sua organização e importância reconhecidas mundialmente. A saúde pública tem problemas crônicos como subfinanciamento, má gestão dos recursos disponíveis, sistema de controle e avaliação deficientes e corrupção. Nos 13 anos que antecederam a pandemia, deixou de aplicar R$ 136 bilhões do orçamento (60%) e investir R$ 58 bilhões; 18 estados e 15 capitais gastaram abaixo da média nacional; a corrupção promoveu o desvio de R$16 bilhões da área da Saúde. Assistimos ao fechamento de mais de 40 mil leitos na década pré-pandemia, incluindo leitos de UTI, fechamento de serviços e unidades de Saúde, com abrangência a hospitais e maternidades. Em 2020, durante a pandemia, deixou de aplicar 70% do previsto até o mês de julho.2 Nenhum país estava preparado para a pandemia, mas o nosso não estava preparado nem mesmo para o dia a dia da população e hoje, passados alguns anos, continuamos com sérias dificuldades antigas e novas. 

Cabe, acerca desses e de outros problemas graves da saúde pública, discutir o financiamento, estrutura e gestão do SUS, a imensa desigualdade existente em nosso país, o grave quebra-cabeças que é a nossa economia e as medidas tomadas por décadas até hoje. Por que não acrescentar ao tema “pediatra na atenção primária” ponderações legais, éticas e bioéticas, que poderão conectar elementos úteis na discussão e elaboração de uma nova estrutura na rede APS?

O Ministério da Saúde recomenda que até os 6 anos cada criança receba um mínimo de 13 consultas de rotina em pediatria (puericultura). Por sua vez, a Sociedade Brasileira de Pediatria recomenda 20 consultas de puericultura até os seis anos e 33 contemplando todas as fases do desenvolvimento de zero até os 19 anos.

No Brasil, nasceram nos últimos anos cerca de 2,5 milhões de crianças por ano. Se considerarmos 75% desta população como usuária do SUS, o número se reduz a 1,9 milhão. Contudo, mesmo com este desconto, o total de consultas de puericultura para todas as idades realizado na rede pública chegou a 1,9 milhão em 2023. Ou seja, incompatível com os parâmetros de excelência existentes nos protocolos pediátricos e incapaz de causarem o esperado impacto no desenvolvimento dos indivíduos durante a infância e a adolescência.1

Crianças e adolescentes não são atendidos, cuidados e acompanhados por pediatra na maioria dos municípios, na Estratégia de Saúde da Família (ESF), a principal estratégia de consolidação da APS. A SBP propõe, por exemplo, 2 a 3 mil pediatras participantes ou a possibilidade de um pediatra para cada quatro equipes da ESF, inicialmente. A presença do pediatra proposta, não é para substituir, mas sim para somar, unir e fortalecer a equipe e o sistema.

Não se trata de um gasto supérfluo ou excessivo, pouco útil ou de alguma forma injustificável, não contemplado nas previsões orçamentárias ou causador de problemas na ordenação de despesas. Ao contrário, é uma política de saúde de alto impacto social, mais segura, com menos riscos para crianças e adolescentes, com redução de custos (menos pedidos de exames, procedimentos e internações desnecessários, menos risco de cronificação de doenças agudas, menos sequelas, menos chances de desenvolver doenças crônico-degenerativas no futuro). Acima de tudo, representa um resgate ao princípio da equidade no âmbito do SUS, garantindo ao Governo meios para oferecer a todas as crianças e adolescentes brasileiras atenção pediátrica qualificada. O Brasil não é um país miserável, não convive com desastre natural ou emergência climática mantido, pandemia ou guerra, para justificar um protocolo que não contemple o mais adequado e acessível cuidado a essa população.

Estima-se que mais de 4 mil novos médicos completaram a residência médica em pediatria em 2024, estando preparados para participar de importantes iniciativas governamentais, como o Programa Médicos pelo Brasil (PMB), o qual foi criado com a missão de ampliar e qualificar o acesso da população à assistência em saúde, em especial na Atenção Primária.

A atuação do pediatra na Estratégia de Saúde da Família, portanto, deve ser entendida como o conjunto de ações, de caráter individual ou coletivo, desempenhadas para a promoção da saúde e a prevenção dos agravos, bem como para as ações de assistência aos problemas de saúde, sendo o eixo norteador para a organização da atenção básica nas unidades de saúde.1

É um direito a ser considerado e atendido; é o princípio constitucional do melhor interesse da criança e do adolescente. Poucas prefeituras assim o fazem. Por que não todas? É o ideal cientificamente comprovado, a garantia da autonomia, beneficência, não maleficência, equidade e justiça (defende a distribuição equitativa dos recursos e cuidados de saúde, garantindo tratamento igualitário a todos os pacientes; pacientes com necessidades semelhantes devem receber tratamento semelhante, independentemente de sua origem étnica, gênero, idade, status socioeconômico ou qualquer outra característica) na ESF. Por que não se corrige essa métrica? Efetivamente, essa janela de oportunidades até os seis anos deve ser aproveitada, não se perdendo a chance de oferecer o melhor para crianças e adolescentes. Van Rensselaer Potter, criador do neologismo “bioética”, abordando a questão da responsabilidade na busca pelo conhecimento, dirigiu-se a cientistas recomendando que eles “pensem a bioética como uma nova ética da ciência que combine humildade, responsabilidade e competência, que seja interdisciplinar e intercultural e que faça prevalecer o verdadeiro sentido de humanidade”.

O artigo 5º da CF garante que “todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza” e “a inviolabilidade do direito à igualdade” (...); o artigo 196, avaliza “a saúde como direito de todos e dever do Estado”, (…) e assegura acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação; a Lei 8.080/1990, Lei Orgânica da Saúde, mantem as diretrizes do artigo 198 da CF e garante: (...) igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie (…). 

O parágrafo único, do artigo 142, da Lei 8.069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), decide que: “a autoridade judiciária dará́ curador especial à criança ou adolescente, sempre que os interesses destes colidirem com os de seus pais ou responsáveis, ou quando carecer de representação ou assistência legal ainda que eventual”. Ele impõe que o poder familiar deve ser exercido em respeito à intrínseca autonomia individual dos menores, que na qualidade de pessoas humanas em desenvolvimento gozam de absoluta prioridade na promoção de seus direitos fundamentais conforme determina o artigo 227 da Constituição Federal (CF) emenda constitucional 65 / 2010 3, ou seja, à luz do princípio constitucional do melhor interesse da criança e do adolescente. Por que não usar esse princípio nos casos de crianças e adolescentes que não estão sendo atendidas, cuidadas ou acompanhadas (a maioria) pelo Pediatra na rede de Atenção Primária em Saúde? Temos 45 milhões de crianças e adolescentes e 48 mil pediatras titulados, uma relação de países desenvolvidos. Naturalmente que somente o número adequado de médicos não é o suficiente para garantir qualidade no atendimento. 

O princípio constitucional do melhor interesse da criança e do adolescente encontra-se, do mesmo modo, no artigo terceiro e parágrafo único do ECA, cuja finalidade é proteger de forma  integral e com absoluta prioridade seus direitos fundamentais; o artigo quarto adverte que “é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à saúde, alimentação, educação”, (...); no artigo quinto, nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, (...); o artigo sexto, determina que “na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento”.

A Autonomia dos pacientes e também dos médicos, tratada no Código de Ética Médica (CEM), seja nos Princípios Fundamentais, nos artigos Diceológicos ou nos artigos Deontológicos, é balizada pela ciência e, naturalmente, pelas leis vigentes no país. Um dos princípios fundamentais do CEM afirma que “a medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza. Compete ao médico aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente e da sociedade”; no último inciso desse capítulo, afiança que “a medicina será exercida com a utilização dos meios técnicos e científicos disponíveis que visem aos melhores resultados”.

O Parecer CREMERJ 160/2005, respondendo a consulta feita por pediatras e suas chefias de um Hospital de Emergência, refere: “tanto o atendimento quanto a ocupação de leitos hospitalares pelo adolescente necessitam de um espaço adequado, respeitando-se as peculiaridades desse grupo etário, conforme expresso no ECA (...). O atendimento médico do adolescente, em todos os níveis de atenção, deverá ser efetuado prioritariamente pelo pediatra; (...) deverá ser disponibilizada aos médicos pediatras, que desejarem aperfeiçoar sua competência quanto ao atendimento a adolescentes, a possibilidade de reciclagem de conhecimentos e habilidades, através de cursos, seminários, estágios e outras medidas adequadas a esse fim”.

O tema “pediatras na atenção primária” pode ser encarado como complexo e controverso, mas não se pode considerar natural a opção de não caber ao pediatra, com prioridade, o atendimento da criança e do adolescente, não se tratando de urgência, emergência ou falta desse especialista. Muito menos que existam dois grupos diversos dessa população, um, majoritário, que não tem direito ao atendimento por pediatra e outro que tem, dentro do mesmo sistema de saúde.