POLÍTICA PÚBLICA NA ATENÇÃO À SAÚDE DA CRIANÇA: UMA BREVE HISTÓRIA
Política pública se refere a um conjunto de ações definidas pelo governo, nos seus diferentes níveis, direcionadas a resolver problemas e desafios sociais e garantir os direitos e promover o bem-estar da população. Dessa forma, visam o interesse público acima do individual, na busca por soluções para as áreas da saúde, educação, segurança, assistência social, meio ambiente entre outras.
Políticas públicas cujo objetivo é o bem-estar da criança são mais recentes. Apenas na idade moderna é que a infância passou a ser entendida como uma fase distinta do desenvolvimento humano, marcada por dependência e diferentes necessidades. Entretanto, foi apenas a partir do século XIX, que a alta mortalidade infantil tornou-se uma preocupação pública, com o objetivo de garantir a mão de obra futura, necessária para a sociedade que passava por um processo de urbanização e industrialização.
Os interesses econômicos e os conhecimentos científicos da época marcaram as práticas de saúde e de proteção à infância até a primeira metade do século XX com um caráter higienista e assistencialista. No Brasil, ocorreu com a criação do Departamento Nacional da Criança, em 1940, com as primeiras ações públicas direcionadas à saúde materno-infantil. Esse Departamento tinha como foco normatizar o cuidado ao binômio mãe-filho por meio de 4 programas principais: alimentar, educativo, de formação de pessoal e de imunização, que enfatizavam a formação das mães para o cuidado visando a prevenção das doenças para a construção de uma nação saudável e produtiva, a partir de um discurso moralizador e medicalizante que correspondia ao modelo biomédico vigente àquela época.
As elevadas taxas de desnutrição e morbimortalidade infantil por doenças infectocontagiosas na década de 70 reforçavam a priorização de programas verticalizados, como o Programa Nacional de Imunizações, criado em 1973 a partir de resultados exitosos da campanha de vacinação para a erradicação da varíola. Em 1975, foi criado o Programa Nacional de Saúde Materno-Infantil, que centralizava as ações direcionadas à saúde da criança e da mulher. Essas ações encontravam respaldo nas agências internacionais, como a OMS e a UNICEF, que propagavam a criação de programas e intervenções seletivas e de baixo custo nos países em desenvolvimento, ainda sob forte influência da visão biomédica tradicional.
O movimento de reforma sanitária da década de 70 culminou em 1978 com a Conferência de Alma-Ata na qual a OMS propôs “Saúde para todos no ano 2000”, que direcionou os modelos assistenciais da década de 80. A UNICEF propôs, nessa época, o programa GOBI-FFF (G - monitoramento do crescimento, O – terapia de reidratação oral, B – amamentação, I - imunização, e FFF para suplemento alimentar, planejamento familiar e educação feminina) visando melhorar os indicadores de saúde materno-infantil. No Brasil foi criado o Programa de Assistência Integral à Saúde da Criança (PAISC) pelo Ministério da Saúde, com ações voltadas ao controle das doenças diarreicas e desidratação, infecções respiratórias agudas, assistência ao recém-nascido, prevenção de acidentes e intoxicações e o acompanhamento do crescimento e desenvolvimento
Paralelamente a esse movimento interno no Brasil, era publicado o relatório Lalonde pelo ministro da saúde canadense, em 1974, que representou um marco inicial para a mudança de visão do modelo de atenção à saúde vigente, identificando quatro determinantes para a saúde da população: 1. biológicos; 2. ambientais, incluindo as condições físicas, sociais, econômicas e culturais; 3. estilo de vida, incluindo comportamentos e hábitos; e 4. assistência à saúde. Ao destacar a importância dos elementos sociais e ambientais, o relatório Lalonde enfatizou a importância das ações de prevenção e promoção da saúde, e foi um marco para o reconhecimento dos determinantes sociais da saúde como eixo estruturante de políticas públicas intersetoriais.
De modo geral, as décadas de 1980 e 1990 representaram uma grande transformação no modelo de atenção à saúde no Brasil, proporcionando muitas conquistas sociais por meio da Constituição Federal de 1988, que contribuiu profundamente para delinear um novo panorama da saúde da criança. Foi, então, a partir da década de 90, com a progressiva transformação do perfil nutricional e de morbimortalidade infantil, que assistimos à transição epidemiológica, paralelamente aos avanços de consolidação dos direitos das crianças. Após a Convenção sobre os Direitos da Criança, chancelada pela Organização das Nações Unidas (ONU) e pela promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) no Brasil e da reestruturação do sistema de saúde brasileiro, com a instituição do Sistema Único de Saúde (SUS), as políticas públicas para a infância foram reorientadas.
O final da década de 90 e o início dos anos 2000 foram marcados pela transformação do modelo assistencial, fortalecendo as ações de promoção da saúde, mas ainda com programas voltados à redução da mortalidade infantil e perinatal, dada a disparidade observada entre as diferentes regiões. Enquanto se vinculava a estratégia da Atenção Integrada às Doenças Prevalentes na Infância (AIDPI) à atenção primária para reduzir a mortalidade infantil principalmente nos estados do norte e nordeste, surgiam vários programas para melhorar a atenção à gestante e ao recém-nascido, frente ao aumento proporcional da mortalidade perinatal. Foi nesse cenário que em 2004 o Ministério da Saúde lançou a Agenda de compromissos para a Saúde Integral da Criança e Redução da Mortalidade Infantil, com ações organizadas a partir das linhas de cuidado.
A partir do compromisso assumido pelo Brasil com a Agenda 2020 proposta pela ONU e com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), as políticas públicas para a infância passaram por uma revisão e foram estruturadas como Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança (PNAISC).
Essa política propõe o cuidado contínuo desde o planejamento reprodutivo até os 9 anos de idade e é estruturada em sete eixos prioritários: 1. atenção à gestação, parto e nascimento; 2. aleitamento materno e alimentação complementar saudável; 3. crescimento e desenvolvimento; 4. imunização; 5. prevenção de acidentes e violências; 6. atenção às doenças prevalentes na infância; e 7. atenção à criança com deficiência ou em situações de vulnerabilidade social. Esses eixos são concretizados a partir de diversos programas, como o Programa Nacional de Imunizações, o Programa Criança Feliz, o Programa de Triagem Neonatal, o Programa Saúde na Escola, entre outros.
A PNAISC está alinhada e respaldada pelo Marco Legal da Primeira Infância, que reconhece a importância da atenção integral e intersetorial para essa fase fundamental do desenvolvimento humano. O ECA e o Marco Legal estabelecem o arcabouço legal que reconhecem o dever compartilhado entre o poder público, a sociedade e as famílias na garantia dos direitos fundamentais da criança.
Entretanto, a operacionalização das políticas públicas é repleta de desafios, relacionados à descontinuidade de programas estratégicos, com as frequentes mudanças políticas e administrativas; o subfinanciamento e a falta de recursos necessários; a capacitação insuficiente de profissionais de saúde; a persistência de inequidades socioeconômicas e de acesso aos serviços, particularmente para populações indígenas, quilombolas, migrantes e de maior vulnerabilidade social; a cultura de desvalorização de ações de promoção da saúde; a dificuldade de gestão, com a insuficiência dos sistemas de informação e a falta de monitoramento e avaliações contínuos, comprometendo a produção de evidências robustas sobre a custo-efetividade dos programas propostos.
Diante dos desafios enfrentados, foi lançado em agosto de 2025 a Política Nacional Integrada da Primeira Infância (PNIPI), que tem como objetivo central integrar, de forma coordenada e intersetorial, as políticas voltadas às crianças pequenas, abrangendo áreas como saúde, educação, assistência social, cultura, direitos humanos, habitação e igualdade racial. Reconhecendo a criança como sujeito de direitos, e da importância do respeito à diversidade e da promoção do desenvolvimento integral, a PNIPI se propõe a reduzir as desigualdades, priorizando as crianças em situação de vulnerabilidade. Reconhecendo a interdependência entre crianças e cuidadores, a política prevê, ainda, ações simultâneas para ambos, articulando-se à Política Nacional de Cuidados. A PNIPI está organizada em cinco eixos estruturantes — Viver com Direitos, Educação, Saúde, Dignidade e Integração da Comunicação com as Famílias — e tem como objetivos estratégicos assegurar a prioridade absoluta das crianças nas políticas públicas, fortalecer o acesso a bens e serviços, integrar bases de dados setoriais e aprimorar a comunicação institucional com famílias, promovendo conhecimento sobre direitos e desenvolvimento infantil.
Reafirmar o cuidado com a infância é fundamental para a construção de uma sociedade mais justa, saudável e sustentável.
Referências:
BRASIL. Decreto nº 12.574, de 5 de agosto de 2025. Institui a Política Nacional Integrada da Primeira Infância. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 6 ago. 2025. Disponível em: https://www.gov.br/mec/pt-br/assuntos/noticias/2025/agosto/governo-lanca-politica-nacional-integrada-da-primeira-infancia. Acesso em: 21 ago. 2025.
Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Área Técnica de Saúde da Criança e Aleitamento Materno. Gestões e gestores de políticas públicas de atenção à saúde da criança: 70 anos de história / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde. Área Técnica de Saúde da Criança e Aleitamento Materno. – Brasília: Ministério da Saúde, 2011.
Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança: orientações para implementação / Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. – Brasília: Ministério da Saúde, 2018.
Nascimento C.C., Komatsu, B.K. Políticas públicas de primeira infância. In: Menezes Filho, N.(org.). Ciência da primeira infância [livro eletrônico]. Centro Brasileiro de Pesquisa Aplicada à Primeira Infância. -- São Paulo: Blucher, 2025, p. 151 – 171.