De corpo e arma

DIOCLÉCIO CAMPOS JÚNIOR Médico, professor emérito da UnB, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria, representante da SBP no Global PediatricEducation Consortium ([email protected]) O Brasil de hoje é um país de muitas belezas e pouca alma. Só sobrevive a dos cidadãos que ainda resistem ao crescimento avassalador do novo e cruel modelo de sociedade. De fato, …


DIOCLÉCIO CAMPOS JÚNIOR

Médico, professor emérito da UnB, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria,
representante da SBP no Global PediatricEducation Consortium ([email protected])

O Brasil de hoje é um país de muitas belezas e pouca alma. Só sobrevive a dos cidadãos que ainda resistem ao crescimento avassalador do novo e cruel modelo de sociedade. De fato, a essência virtuosa da pessoa supunha, no passado recente, a integridade dignificante do binômio corpo e alma. A beleza da mente, adornada pelo primor do espírito, florescia nos jardins suspensos do corpo humano, conferindo-lhe o brilho de sublime maravilha do mundo. Distanciava-se do primitivismo presente na herança animal de difícil superação. Já não é mais assim. As coisas mudaram profundamente. Pessoas são preteridas. Predominam indivíduos de corpo e arma.

A era da alma é um precioso período histórico da humanidade. Nasceu do iluminismo inteiramente comprometido com valores éticos e filosóficos que projetaram o conceito de homo sapiens. Cultivaram-se, desde então, os componentes da diferenciação intelectual que promoveu a espécie ao pódio do evolucionismo. Os aprimoramentos comportamentais advindos fizeram fluir, desde o leito da límpida nascente humanista, a substância ontológica de fecunda alteridade que passou a irrigar as planícies do universo interativo. Esculpiu-se o conceito de civilização no ateliê psíquico de um animal que se distanciava da animalidade. Ganhou dimensão, projetou o princípio da convivência pacífica e respeitosa como fundamento único das virtudes humanas. Contrapôs-se à lei do mais forte, arcaica fonte de poder incompatível com o sonho milenar de uma humanidade não selvagem.

Os avanços conseguidos descortinavam a paz verdadeira no horizonte da sociedade. Mas a luz no fim do túnel sofreu terrível apagão. Os povos civilizados testemunham o retrocesso que obscurece a mentalidade do mundo atual. Selvageria econômica faz prevalecer a cegueira da violência que embrutece o universo das relações interpessoais. Indústria de armas não abre mão do império das atrocidades que lhe dá vigor e privilégios. Estimula o animalismo, base sólida em que se apoiam as estratégias de marketing utilizadas para seduzir consumidores do utensílio letal que os empoderam no mau sentido. Tão perverso encantamento da arma extingue a alma. Não respeita a vida. Perpetra a morte do outro.

Incentivar o uso rotineiro desse gatilho mortal é o objetivo subliminar mais perseguido pelos meios de comunicação, máxime por aqueles que trabalham competentemente com imagens. Heróis e bandidos que encenam roteiros diversos têm em comum, na cintura ou nas mãos, o revólver que lhes confere personalidade. A arma de fogo termina incorporada à anatomia do homem, que passa a ser sintetizada pela grotesca associação de corpo e arma. Os resultados horrorizam. Multidões armadas orgulham-se de sua potencial capacidade homicida realçada como virtude. São os novos fiéis cuja fé não remove montanhas, mata sem dó nem piedade.

O Brasil é a contundente fotografia dessa sinistra realidade. Os números falam por si. Desde o referendo de 2005, a sociedade dá provas de mórbida paixão pela violência. Em 2010, o índice de homicídios por arma de fogo, nos 12 países mais populosos do planeta, desmascara a cordialidade brasileira. O país “abençoado por Deus e bonito por natureza” foi, disparado, o campeão de disparos letais. Alcançou a cifra de 36.792 mortes ao ano, alarmante quando comparada à do segundo colocado, o México, que totalizou, no mesmo período, 17.561 óbitos de igual causa.

A brutalidade brasileira não se exprime apenas nos números absolutos da pesquisa. Quando referida proporcionalmente a 100 mil habitantes, fica ainda mais feia. Lidera vergonhosamente o ranking da violência armada. Atinge 19 óbitos para cada 100 mil habitantes ao ano. Bem acima do que se passa nos demais países estudados, como Estados Unidos, cujo índice é de 3,9; China, de 0,7; Índia, de 0,2; e Japão, de 0,001. O panorama é deprimente para a sexta economia mundial. Sem dúvida, somos um dos países onde é mais perigoso viver.

Não foi, portanto, sábia a decisão de dar adeus às almas. É preciso revê-la com urgência. Urge, pois, dar adeus às armas. Não há outra solução capaz de acabar com o dantesco inferno a que os brasileiros se condenaram. Para fazê-lo com honestidade, não bastam medidas de efeito. Há que mudar a cultura de violência que se enraizou na sociedade. Impedir a exibição de cenas com armas de fogo, em todo e qualquer espaço midiático, é um requisito insubstituível para desarmar a mente das pessoas e trazer de volta a alma nacional da paz.