Documento científico da SBP analisa o tema da autolesão em adolescentes


Os comportamentos autoagressivos aumentaram de frequência e gravidade nos últimos anos, constituindo um desafio enfrentado no dia a dia pelos profissionais de saúde, educadores e familiares. Compreender a motivação e reconhecer as consequências da autoagressividade podem também explicar o engajamento e a associação em outros comportamentos prejudiciais, como abuso de substâncias psicoativas, por exemplo. O tema é abordado no documento científico “Autolesão na adolescência: como avaliar e tratar”, divulgado nesta terça-feira (23) pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).

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Produzido pelo Departamento Científico de Adolescência da instituição, o documento proporciona atualização sobre os principais aspectos dos comportamentos autolesivos não suicidas, no intuito de auxiliar na identificação e condução do problema na atenção integral à saúde de adolescentes e jovens.

“Considerando-se a alta prevalência do comportamento autolesivo na adolescência e suas consequências, e que comportamentos ocorridos nesta faixa etária podem estender-se à vida adulta, estudar a autolesão em adolescentes fomenta estratégias de intervenção e prevenção mais eficazes”, dizem os especialistas.

Segundo o DC de Adolescência da SBP, pais e professores devem ficar atentos às alterações bruscas de comportamento, ao aumento da agressividade, ao sentimento de tristeza, ao aumento da ansiedade, ao isolamento, às marcas pelo corpo, aos amigos com quem o jovem ou a criança se relaciona, ao tempo em que permanece na internet e às redes sociais as quais pertence.

“É necessário que a pessoa possa colocar essas experiências em palavras, possa sentir-se compreendida, acolhida e buscar uma outra forma de expressar essa dor, de compartilhá-la, que não seja pela autolesão. O papel importante da família, educadores e profissionais de saúde é ouvir e procurar compreender o que se passa, sem procurar culpados, sem castigos; aproximar-se; avaliar como e o momento oportuno de oferecer ajuda e qual tipo de ajuda; e da necessidade de encaminhamento para um acompanhamento psicológico”, ressalta o texto.

MANIFESTAÇÕES – De acordo com o documento científico, existem duas manifestações desse comportamento: autolesão com pretensão final de suicídio e autolesão sem ideação suicida (ALNS), a qual também é denominada self-cutting ou self-injury, com dano superficial e sem a pretensão de levar à morte. No entanto, alguns métodos utilizados, às vezes, se sobrepõem àqueles de tentativas de suicídio, como cortar os pulsos com navalha, por exemplo. Como diz o texto, “tal comportamento é sempre sinal de risco, não deve ser negligenciado e precisa desatenção especial”.

“Importante destacar que comportamentos socialmente aceitos como piercing, tatuagem, sejam parte de um ritual religioso ou de forma cultural, não são considerados como autolesivos”, complementa o DC de Adolescência da SBP.

EPIDEMIOLOGIA – O conhecimento que se tem sobre a violência autodirigida deriva de relatos efetuados pelas próprias pessoas, situações pouco frequentes pela tentativa de ocultação por parte do adolescente, ou por lesão cutânea descoberta no exame físico. Ambas as condições que podem levar a erros de informação e subnotificação de casos.

O Brasil não possui dados específicos sobre o número de jovens que se automutilam. Quanto à prevalência, a literatura aponta que as condutas autolesivas ocorrem entre todas as raças/etnias, condições socioeconômicas, orientações sexuais, crenças religiosas e níveis educacionais.
“Há poucos relatos desse comportamento em indivíduos com menos de 12 anos, mas parece ocorrer em 10% a 13,5% deles.  As pesquisas são unânimes em destacar que a prevalência aumenta na adolescência entre 13 e 14 anos, com resultados que variam entre 4% e 46,5 %. Algumas apontam que comportamentos autolesivos podem ocorrer pelo menos uma vez na vida, durante o processo da adolescência”, destaca o documento.

Em referência ao gênero, o DSM-5 indica que a proporção de ocorrências entre indivíduos do sexo feminino e masculino é de 3/1 ou 4/1. Um estudo alemão também refere que as mulheres relataram taxa significativamente maior de ALNS (4,1% vs 1,9%, p = 0,001) do que os homens.

RISCOS – Os fatores que influenciam na predisposição às ALNS podem ser didaticamente divididos em individuais, familiares, sociais, embora, em muitas das vezes, atuem de forma conjunta e superponível (Quadro 1).
 
 
 
Estudo nacional recente relacionou autolesão em jovens com depressão maior, Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e Transtorno Opositor Desafiante (TOD). Além disso, a presença de transtorno de ansiedade nas mães esteve fortemente associada com autolesão deliberada recente e ao longo da vida em seus descendentes.

Segundo o documento, as interações online podem encorajar a autolesão, alguns sites demonstram técnicas e métodos para tal prática, inclusive com vídeos de desafios perigosos que podem induzir este tipo de comportamentos entre adolescentes embora a pessoa autora dos posts consiga permanecer aparentemente sem identificação.

“Assim, é preciso estar atento ao conteúdo de muitos sites e redes sociais, uma vez que a ALNS vem denotando caráter epidêmico. Além disso, o sofrimento compartilhado em ambiente virtual não deixa de ser real para quem o postou”, observam os especialistas.

DIAGNÓSTICO – Embora os adolescentes tentem ocultar as lesões, alguns comportamentos podem servir de sinais de alerta. De maneira geral, o adolescente executa os ferimentos em locais onde possa ficar sozinho e com privacidade. Esses comportamentos ocorrem para ocultar o ato ou o sentimento de vergonha/culpa, sendo também o motivo da escolha por locais do corpo que possam ser facilmente escondidos por roupas ou algum acessório, preferencialmente braços, pulsos, pernas, abdômen.

“Nesse sentido, é importante que o profissional fique atento ao uso de roupas com manga e calças longas, mesmo sob forte calor, uso de pulseiras, faixas, braceletes. Mudanças no comportamento como preferência por isolamento social, irritabilidade, autocrítica exacerbada, transtornos alimentares e diminuição da higiene pessoal devem levantar alguma suspeição”, ressaltam os especialistas.

A gravidade da autolesão pode ser verificada pela Escala de Comportamento de Autolesão (ECA) adaptada para o Brasil por Giusti (2013), que estabelece os seguintes níveis:
• leve - morder a si mesmo ou realizar vários arranhões na pele;
• moderada - bater em si mesmo propositalmente, arrancar cabelos, inserir objetos embaixo da unha ou sob a pele, ou fazer uma tatuagem em si mesmo sem a conotação socialmente convencionada;
• grave - cortar ou fazer vários pequenos cortes na pele, queimar-se, beliscar-se ou cutucar áreas do corpo até sangrar intencionalmente.

CONDUTA – O documento científico recomenda abordar o paciente em ambiente acolhedor, considerar sua individualidade e jamais negligenciar suas dores psicológicas. O vínculo paciente-médico e a abordagem ética são fundamentais. Também é essencial estabelecer uma relação de confiança e afetividade, buscando dialogar continuamente sobre outros meios de solucionar os problemas, que não sejam por se ferir.

Para os especialistas, à medida em que esses jovens são acolhidos e orientados, passam a externar suas preocupações e conseguem se perceber mais confiantes. Para eles, a família tem papel mais do que fundamental nessa jornada, devendo ser orientada a buscar apoio psicológico.
“Se faz necessário atender os/as adolescentes e vê-los com suas individualidades, incentivando a autonomia, o desenvolvimento do indivíduo como ser social, cidadão, ser ativo nas relações de poder, reprodutor de discursos e um ser de resistência. Este é o grande desafio frente a todas as questões de saúde apresentadas pela população”, concluem os especialistas.

O documento foi elaborado pelos drs.Alda Elizabeth Boehler Iglesias Azevedo; Evelyn Eisenstein; Beatriz Elizabeth Bagatin Veleda Bermudez; Elizabeth Cordeiro Fernandes; Halley Ferraro Oliveira; Lilian Day Hagel; Patrícia Regina Guimarães; e Tamara Beres Lederer Goldberg. Colaboraram os drs. Gustavo Iglesias de Azevedo e Vânia Oliveira de Carvalho (DC de Dermatologia da SBP); e Rackel Eleutério Martins (IMIP, Recife, PE).