35 anos do ECA: dra. Rachel Niskier revisita marcos e desafios na defesa dos direitos das crianças e adolescentes

Antes mesmo de o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) ser sancionado, em 1990, a dra. Rachel Niskier já estava nas ruas do Rio de Janeiro, ao lado de pediatras da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e de hospitais públicos, colhendo assinaturas “em uma mesinha de madeira” no centro da cidade. Instalado em frente ao Palácio Gustavo Capanema, então sede do Ministério da Educação, o posto improvisado foi cenário de semanas de mobilização, diálogos com a população e episódios marcantes, entre curiosos, engajados e indiferentes. “Foram momentos interessantes. Muitas pessoas passavam omissas, outras se engajavam”, relembra a pediatra.

Na história da SBP, muitas foram as fundamentações teóricas e as ações importantes para a construção social do ECA. Agora, 35 anos após a promulgação do Estatuto, dra. Rachel Niskier revisita os marcos dessa construção em um bate-papo com a secretária-geral da SBP, dra. Maria Tereza da Fonseca Costa, refletindo sobre os avanços conquistados e os desafios que ainda persistem na defesa dos direitos de crianças e adolescentes.

CONFIRA, A SEGUIR, OS PRINCIPAIS TRECHOS DA CONVERSA. 

Dra. Maria Tereza: Qual era o contexto de direitos das crianças e dos adolescentes no período anterior ao ECA?

Dra. Rachel: Desde 1967, portanto, há quase seis décadas, tenho a carteirinha de sócia da Sociedade Brasileira de Pediatria. Na década de 1980, iniciou-se um grande movimento social em defesa da infância e da adolescência, juntamente com uma compreensão mais profunda sobre o papel que nós, pediatras, temos na sociedade.

Naquele período, era comum ver meninos, pré-adolescentes e adolescentes, ou até um pouco mais velhos, perambulando pelas ruas, em situação de vulnerabilidade, precisando de atendimento e de assistência nas necessidades mais básicas e estruturantes da vida. Foi nesse contexto que me engajei nos movimentos sociais pela infância e adolescência. Existia uma necessidade interna, difícil de explicar à época, mas hoje muito clara para mim: a de estar próxima dessas pessoas e corresponder à minha formação humanística.

A década de 80 foi marcada por grandes problemas sociais, econômicos e políticos. Foi o período em que se formava um grande movimento nacional pela criação de uma nova Constituição. Muito se discutia, lutava e construía em convenções e declarações sobre os direitos humanos de crianças e adolescentes. Era um período de redemocratização do País..

Dra. Maria Tereza: Qual foi a participação dos pediatras na elaboração do Estatuto da Criança e da Adolescente (ECA)?

Dra. Rachel: Em 1988, foi promulgada a nova Constituição, chamada de Constituição Cidadã. Logo em seguida, eu, junto aos movimentos sociais pela infância e sempre em parceria com a SBP, nós, pediatras, colaboramos, na medida do possível, oferecendo insumos teóricos e práticos. Concretamente, auxiliamos na elaboração do que viria a ser o ECA.

Lembro-me perfeitamente de quando, durante semanas, eu me sentava numa mesinha de madeira, com uma cadeirinha também de madeira, em frente ao Palácio Gustavo Capanema, que foi sede do Ministério da Educação durante muitos anos, quando o Rio de Janeiro ainda era a capital federal, colhendo assinaturas para que o ECA fosse viabilizado no Congresso Nacional. Colhi muitas assinaturas. Foram momentos curiosos, engraçados e, às vezes, tristes. Muitas pessoas passavam indiferentes; outras, se engajavam.

A aprovação do ECA, em 13 de julho de 1990, foi um verdadeiro divisor de águas na vida de crianças e adolescentes brasileiros. Não apenas para uma classe social, raça, etnia ou credo, mas para todos, sem qualquer tipo de exceção. Todas as crianças e adolescentes passaram a ter, como têm até hoje, pelo menos na lei, o direito à vida, à saúde, à educação, ao lazer... a tudo o que é fundamental para que possam se desenvolver plenamente, tornar-se adultos produtivos e cidadãos, no sentido mais amplo da palavra.

Dra. Maria Tereza: Como iniciou a sua atuação junto ao Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA)?

Dra. Rachel: Já na década de 1990, o presidente da SBP na época me convidou para representar a instituição no Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA). Eu, que já vinha de uma trajetória bastante concreta, forte e robusta no movimento social pela infância, aceitei na hora. E lá fui eu, representar a SBP no CONANDA, como conselheira da sociedade civil.

Foram várias gestões de muita luta, muito aprendizado e muita presença nos gabinetes dos deputados federais, tentando viabilizar, por exemplo, a aprovação da licença-maternidade em âmbito nacional. Além disso, coordenei no Ministério da Saúde, por cinco anos, o programa do adolescente, minha principal área de atuação. Sou pediatra com área de atuação em adolescência.

Após algumas gestões no Ministério da Saúde, voltei para o Rio e fui eleita pela sociedade civil, com apoio da Sociedade de Pediatria do Estado do Rio de Janeiro (SOPERJ), para integrar o Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDICA). Você nota que nunca separei minha atividade profissional da minha atividade política, no sentido mais amplo e cidadão.

Dra. Maria Tereza: Quais avanços foram percebidos nos primeiros anos do ECA e você destacaria?

Dra. Rachel: Com o Estatuto, que trouxe à tona os direitos fundamentais por meio de todos os seus artigos, e também com as convenções nacionais e internacionais das quais o Brasil é signatário, houve uma mudança de concepção. O Judiciário passou por transformações importantes, com o surgimento de grandes lideranças não apenas na Defensoria Pública, mas também nos juizados, na promotoria, no Ministério Público, nas escolas, entre professores.

Houve um avanço significativo. O Estatuto se tornou um marco, um verdadeiro indicador de melhoria. Ele passou a oferecer documentos, diretrizes e recomendações que impediam a criminalização da pobreza entre crianças e adolescentes. Em resumo: milhões de meninos e meninas, que antes eram vistos quase como criminosos, passaram a ser reconhecidos como sujeitos de direitos.

É importante lembrar também que, desde a década de 1970, já existia no Brasil um movimento muito relevante nas universidades, com a criação de núcleos de atenção à saúde da criança e do adolescente, com forte rigor técnico-científico. No entanto, havia, e ainda há, um problema que persiste: esses núcleos, por mais qualificados que fossem, abrangiam uma parcela muito pequena do imenso contingente de crianças e adolescentes que o Brasil tem. Ou seja, o alcance era limitado diante da dimensão da nossa população pediátrica.

Dra. Maria Tereza: Como avalia o atual cenário da assistência à criança e ao adolescente no Brasil, no contexto dos 35 anos do ECA?

Dra. Rachel: O sistema de garantia de direitos se estruturou de forma muito robusta e hoje é facilmente identificável. Houve um avanço significativo ao longo dessas décadas, especialmente após a redemocratização do País.

É claro que temos muitas iniciativas bem-sucedidas em todo o Brasil. Há estados com programas excelentes, de elevado nível técnico-científico, que buscam, de maneira concreta, colocar em prática os preceitos estruturantes da cidadania. Houve grandes avanços, sim. Mas, neste momento, também vivemos alguns retrocessos.

Temos, porém, o respaldo do ECA, um marco que serve de referência para diversos países ao redor do mundo. Precisamos, a partir das nossas entidades de classe, atuar firmemente para incorporar todos os ensinamentos que médicos de adolescentes, pediatras e profissionais comprometidos com a infância vêm acumulando ao longo dos anos. São esses profissionais, junto com todos que lutam pela melhoria da qualidade de vida da nossa população infantojuvenil, que, unidos, seguem tentando transformar essa realidade.

Dra. Maria Tereza: Estamos nos encaminhando para o encerramento deste depoimento, mas me lembrei de algumas questões que gostaria de compartilhar com você. Por exemplo, o direito da mãe acompanhante nos hospitais, a obrigatoriedade da vacinação, e outros elementos que dizem respeito aos cuidados e à atenção à saúde. Tudo isso passou a ser muito mais consolidado a partir do ECA. Antes do Estatuto, esse respeito acontecia pontualmente, em uma ou outra instituição. Mas, a partir dele, houve um caminho claro de fortalecimento da defesa desses direitos, e a SBP sempre esteve à frente dessas proposições. Você tem na sua trajetória o Instituto Fernandes Figueira, o Hospital Municipal Salles Neto... Imagino que todas essas experiências tenham representado para você momentos de consolidação prática dos direitos estabelecidos no Estatuto. Gostaria de compartilhar como foi essa vivência?

Dra. Rachel: Agradeço muito essas ponderações, porque essas lembranças são nossas. Elas não são apenas minhas ou suas, são de todos nós que trabalhamos por isso. É até curioso rememorar, mas no Hospital Salles Neto, onde estive durante seis anos na direção, a presença da mãe, antigamente, era vista muitas vezes como um empecilho. A mãe “atrapalhava” o trabalho. Com o ECA, isso mudou completamente. Passou-se a entender que a mãe é parte fundamental do cuidado. Introduzimos o alojamento conjunto, e também uma mudança de visão importante: o pai deixou de ser visto como “visita”. Pai não é visita. Ele é parte da formação dessa menina, desse menino que nasce.

Depois, lutamos pela ampliação da licença-maternidade para seis meses, com a criação do projeto Empresa Cidadã, que acabou se consolidando. Agora, a luta é pela ampliação da licença-paternidade, que também é fundamental. Houve tantos avanços que seria impossível, em uma conversa como essa, mencionar todos. Mas o Estatuto deu força e deu rosto a esses direitos. Hoje, por exemplo, é crime impedir que uma mãe acompanhe seu filho no hospital — é um direito garantido. O bebê já nasce com a mãe ao lado, e com a certidão de nascimento, algo que antes não acontecia e que, hoje, é amplamente difundido entre a maioria dos brasileiros.

Dra. Maria Tereza: Quais os próximos passos para garantir melhorias de vida à população pediátrica?

Dra. Rachel: Todos os direitos básicos já foram, não diria implementados, mas reconhecidos e regulamentados como direitos fundamentais da criança e do adolescente. No entanto, ainda falta muita coisa. Quero aproveitar esse momento tão precioso, de estar aqui na Sociedade conversando com vocês, para lembrar que quase tudo o que diz respeito à melhoria da vida desses meninos e meninas brasileiros já está escrito. A nossa grande missão é tirar os artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente do papel e transformá-los em ações concretas, que impactem diretamente a vida dessas crianças e adolescentes. São eles que, no futuro, vão nos entregar um país mais livre, soberano, democrático e, principalmente, justo.